quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O regime das capitanias hereditarias

O regime das capitanias hereditarias

O sistema instituidor das capitanias hereditárias não era novidade em Portugal. Este regime já fora posto em prática nas ilhas portuguesas do Atlântico. São Vicente se constituía
em baluarte da defesa do Sul da Colônia, mas, o que se via, era que o resto do litoral estava mal defendido. Outros núcleos deviam ser fundados, o que era difícil para Portugal, que tinha seu erário ameaçado pela triste experiência da índia.
Diogo de Gouveia, ilustre mestre residente na França, onde gozava de prestígio, pois fora reitor da Universidade de Paris e Principal do Colégio Santa Bárbara, tinha justificado receio de que os franceses ocupassem o Brasil de forma a não se poder, depois, desalojá-los daqui. E estava, evidentemente, bem informado e isto levou ao conhecimento de seu amigo e soberano, D. João III. E aconselhava dar terras do Brasil aos que pudessem povoá-las, colonizá-las, defendê-las, torná-las produtivas, enriquecerem.
Escrevia: "Quando vossos vassalos forem ricos, os Reinos não se perdem por isso, mas se ganham, porque quando lá houver sete ou oito povoações estes bastantes para defenderem aos da terra que não vendam o Brasil (pau-brasil) a ninguém e não o vendendo as naus não hão-de querer lá irem para virem de vazio.
Depois disto, aproveitarão a terra, na qual não se sabe se há minas de metais como deve haver, e converterão a gente, à fé, que é o principal intento que deve ser de Vossa Alteza, e não teremos pendença com esta gente, nem com outra."
Tais conselhos pesavam.
Por essa razão, o rei resolveu dividir o Brasil em capitanias que constituíam áreas cujas divisas eram linhas retas e paralelas que, saindo da costa, iam encontrar, perpendicularmente, a linha de Tordesilhas.
D. João se apressa em informar Martim Afonso de Sousa: "Depois de vossa partida se praticou se seria meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil, e algumas pessoas me requeriam Capitanias em terras dela. Eu quisera, antes de nisso fazer coisa alguma, esperar por vossa vinda, para com vossa informação fazer o que me parecer, e que na repartição que disso se houver de fazer, escolhais a melhor parte. E porém porque depois fui informado que de algumas partes faziam fundamento de povoar a terra do dito Brasil, considerando eu com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentada na terra, e ter nelas feitas algumas forças (como já em Pernambuco se começava a fazer, segundo o Conde de Castanheira vos escreverá), determinei mandar demarcar de Pernambuco até ao Rio da Prata cinqüenta léguas de costa a
cada Capitania, e antes de se dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para vós cem léguas, e para Pêro Lopes, vosso irmão, cinqüenta, nos melhores limites dessa costa, por parecer de pi lotos e de outras pessoas de quem o Conde, por meu mandado informou; como vereis pelas doações que logo mandei fazer, que vos enviará; e depois de escolhidas estas cento e cinqüenta léguas de costa para vós e para vosso irmão, mandei dar a al gumas pessoas que me requereram Capitanias de cinqüenta leguas cada uma; e segundo todos fazem obrigações de levarem gente e navios à sua custa, em tempo certo, como vós o Conde mais largamente escreverá; porque êle tem cuidado de me requerer vossas coisas, e eu lhe mandei que vos escrevesse."
As capitanias, pela sua natureza jurídica, constituíam verdadeiros feudos. Há os que as julgam semifeudais. Na realidade, os donatários ou capitães, seus governadores, estavam investidos de poderes de senhores feudais.
O ato jurídico que as instituía chamava-se doação. A carta de doação era um verdadeiro diploma legal onde, além da doação, instituía normas, criando direitos e obrigações.
Os donatários exerciam poderes quase que absolutos "cobrando tributos para si, concedendo terras, nomeando direta ou indiretamente os encarregados da administração da respectiva capitania, que se tornava, dessa forma, um feudo, administrando, pessoalmente, ou por seus adeptos, a justiça aos moradores da capitania, tanto no cível como no crime, e gozando ao mesmo tempo da inviolabilidade da própria capitania por parte até dos representantes da coroa, e da impunidade pessoal pelos crimes que porventura cometessem. Gozavam, afinal, os donatários, de uma situação de soberano, bastante lisonjeira para induzi-los a aceitar e enfrentar os labores da colonização."
Para a coroa ficaram reservados o quinto das pedras preciosas e metais, bem como o monopólio do pau-brasil, das drogas e especiarias, o dízimo de todos os produtos, por ser o rei o grão-mestre da Ordem de Cristo, e os direitos das alfândegas arrecadados por seus feitores, com escrivães e agentes.
Com este regime, pôde Portugal espalhar em toda a costa inúmeros povoados e vilas (os donatários tinham poderes para instalar vilas), erguer casas-fortes e torres, ter grupos aguerridos para lutar contra piratas e índios. Tudo à custa dos capitães, que embora fracassados na sua quase totalidade (exceção feita aos de S. Vicente e Pernambuco) foram pioneiros da colonização regular do Brasil.
Eram 12 os capitães:
1 — Santo Amaro (de Laguna a Cananéia) e terras de
Santana (da ilha do Mel até à altura de Laguna) — Pêro Lopes de Sousa. Cada qual um lote.
2 — São Vicente (de Cananéia a Cabo Frio) — Martini Afonso de Sousa. Dois lotes.
3 — Paraíba do Sul (de Cabo Frio a Itapemirim) —
Pêro Góis.
4 — Espírito Santo (de Itapemirim a Mucuri) — Vasco Fernandes Coutinho.
5 — Porto Seguro (do Rio Mucuri até o limite incerto de Ilhéus) — Pêro de Campos Tourinho.
6 — Ilhéus (dos limites de Porto Seguro à barra da Bahia de Todos os Santos) — Jorge Figueiredo Correia.
7 — Bahia de Todos os Santos (da barra do mesmo nome até a foz do rio São Francisco) — Francisco Pereira Coutinho.
8 — Pernambuco (do rio São Francisco ao norte do rio Iguarassú) — Duarte Coelho.
9 — Itamaracá (do norte do rio Iguarassú à baía do Açejutiribó, hoje Traição) — Pêro Lopes de Sousa.
10 — Maranhão (da baía de Acejutiribó à foz do rio
Gurupi) — Aires da Cunha que se associou ao historiador João de Barros, autor das Décadas. Dois lotes.
11 — Ceará (da foz do rio Mossoró até a foz do rio Ca-
mocim) — Antônio Cardoso de Barros.
12 — Piauí, compreendendo parte do Maranhão (da foz do Camocim à ponta do Mangues Verdes) — Fernando Álvares de Andrade.
De todas as capitanias duas haveriam de progredir, a de São Vicente e a de Pernambuco. Da primeira já nos ocupamos, ao falar de Martim Afonso de Sousa.
As duas capitanias que floresceram eram, no conjunto geral, uma situação à parte. Revestiam-se de outras condições históricas.
Segundo parece, em 1526, Pernambuco já produzia açúcar e este era exportado para Portugal. Pero Capico ali instalara um pequeno engenho, oito anos, ou mais, antes da criação das capitanias. Não temos informações seguras como as que se referem a São Vicente, mas encontramos pequena semente do seu grande progresso.
Divisão do Brasil em capitanias hereditárias. Vê-se, também, a linha perpendicular — o Meridiano de Tordesilhas — que dividiu a América do Sul entre as coroas portuguesa e espanhola.
Duarte Coelho, o seu donatário, era homem enérgico e empreendedor. Dele fala Costa Porto:
"Largado na vastidão do mundo cabralino, o capitão donatário teria, assim, de contar consigo mesmo, e se não tivesse energia e capacidade para dominar o ambiente acabaria esmagado, como ocorreu com quase todos os donos de feudos na Colônia. Velho marinheiro, amadurado nas lutas do expansionismo lusitano, Duarte Coelho porém não desanima. Esta terra é nossa empresa, poderia dizer com o padre Nóbrega e, para o êxito da experiência colonizadora, joga na arena tudo que lhe está ao alcance.
É uma tremenda batalha nas sombras, esta travada pelo donatário, Yo no vino aqui para cultivar la tierra com um la~ briego, sino para buscar oro, dizia Cortez ao desembarcar no continente americano. Duarte Coelho pensa diferentemente. A posse de minerais lhe parece coisa secundária, preocupando-se, primordialmente, com o campo. Este, na verdade, um dos aspectos marcantes da sua situação na Nova Lusitânia, orientação de resto que não é somente sua, mas constitui processo comum ao lusitano no Brasil."15
Fora essas duas exceções, São Vicente e Pernambuco, o regime das capitanias fracassou, pois para a Colônia não era o indicado, porque não lhe dava unidade administrativa, entendendo, como se entendiam, os donatários diretamente com Lisboa que, aliás, não tinha condições de atender aos reclamos dos donatários abandonados à própria sorte.
A Colônia reclamava unidade, socorro recíproco, assistência mútua entre as unidades que a compunham e isto, na realidade, não existia. Cada qual que cuidasse de seu destino.
As capitanias foram, depois, revertendo à Coroa, ou porque a linha sucessória dos donatários veio a se extinguir, ou através de indenizações aos herdeiros dos primeiros capitães.
A incorporação das capitanias à coroa, como medida de ordem geral, se deve a D. José I. Com isto houve uma modificação nas condições político-jurídicas da Colônia, pois que as capitanias passaram a ser administradas diretamente pela metrópole, como também extinguiam-se os privilégios resultantes das cartas de doação e dos forais.
Surgem, então, as capitanias gerais, às quais se subordinavam as que podem ser denominadas capitanias subalternas, cujo estudo, porém, não cabe na natureza deste trabalho.
Já que falamos em linha sucessória, nunca é demais lembrar que as capitanias eram hereditárias, porque só podiam ser
transmitidas por sucessão, sendo que os herdeiros deviam conservar o apelido de família.
"Estabeleceu-se, como cláusula dotal, sucessão fideicomis-sária perpétua, segundo os costumes feudais, mercê da jurisprudência heróica reguladora dos morgados."10
Ensina Pascoal José de Melo Freire:
"O morgado, entendido como disposição de propriedade, é um fideicomisso gradual, sucessivo, perpétuo e indivisível, deixado para o fim de se conservar o nome e esplendor de uma família, aproveitando sempre à pessoa mais velha da mesma, circunstância esta, de que a disposição tomou o nome, formado das duas palavras — majores natu — que exprimem aquela qualidade e requisito nos substituídos, ou nos chamados de fideicomisso."17
Há de se ver, aqui, com ligeira alteração, o sentido e o porquê das capitanias hereditárias, no que tange à sucessão.
A população das capitanias era composta de gente de boa conduta e ânimo forte, de índios livres ou escravizados, das primeiras gerações de mamelucos, de aventureiros, náufragos, desertores, degredados e fugidos da justiça.
"Atendendo a que, por delitos cometidos, muitas pessoas andavam foragidas, ausentando-se para reinos estrangeiros; sendo de grande conveniência, entretanto, que ficasse antes no reino e senhorio, e sobretudo que se passassem para as capitanias do Brasil — houve El-Rei por bem declará-la couto e homizio para todos os criminosos que nelas quisessem vir morar, ainda que já condenados por sentença até pena de morte, excetuados somente os crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa."18
De modo geral, as coisas no Brasil andavam mal. Devia a coroa tomar iniciativa para defendê-lo e organizá-lo, que os particulares, por mais que fizessem não tinham condições para pôr ordem em toda a costa e evitar as constantes visitas de piratas e outros aventureiros. Só um governo geral, que trouxesse força para administrar e prestígio para se impor teria condições para pôr termo àquele estado de coisas que se criara por falta de autoridade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário