Governo-Geral
Por Carta Régia de 7 de janeiro de 1549, foi criado o Governo Geral do Brasil, com sede na Bahia de Todos os Santos, Capitania que voltara à coroa com a morte do seu infeliz donatário, Francisco Pereira Coutinho.O novo regime trazia a vantagem de criar um governo centralizador dos interesses das capitanias, que, até então, eram inteiramente autônomas entre si, sem o menor liame que as ligasse, submetidas diretamente à coroa. Somente o comércio e:a livre, não pagando os produtos negociados, entre elas, qualquer tributo.
O período administrativo de cada governador geral era de três anos e a cada um o rei daria um regimento. Acontece porém que o regimento dado a Tomé de Sousa, por ordem real, foi servindo aos governos que o sucederam, durante mais de 100 anos. E o período administrativo, embora fixado em 3 anos para cada gestão, não foi respeitado, por conveniências da coroa.
"O Regimento de 17 de dezembro de 1548, base do segundo sistema de administração colonial, vigorou por mais de um século, servindo a todos os sucessores de Tomé de Sousa até 1677. Foi somente no começo desse ano que se deu novo regimento ao governador nomeado — Roque da Costa Barreto. Teve tal regimento a data de 23 de janeiro e compunha-se de 61 artigos explícitos e minuciosos."10
No Regimento do Primeiro Governador assinala-se que "o principal fim porque se manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica."
Tomé de Sousa chegou ao Brasil, tendo desembarcado na Bahia, a 29 de março de 1549.
Vinha na sua esquadra um sistema completo de governo e sua organização. Para os negócios da Justiça foi nomeado um ouvidor-geral na pessoa do experimentado e competente Pêro Borges; para provedor da Fazenda, Antônio Cardoso de Barros, que tinha a atribuição de arrecadar impostos e mais dinheiros da coroa; e para defender e vigiar o litoral, fora designado Pêro Góis, com o título de capitão-mor da costa.
Entende-se, perfeitamente, que se estabelecia uma verdadeira hierarquia, ao ser nomeado um governador geral, ao qual se submetiam os governadores ou capitães das capitanias; um ouvidor-geral em grau superior aos ouvidores; um provedor da Fazenda Real, ao qual competia zelar, em todo o território pela arrecadação da coroa; e, finalmente, um capitão-mor da costa, que era o coordenador da defesa do litoral, dando unidade ao que já existia espalhado pelo litoral, o que representava maior segurança.
Com Tomé de Souza veio também o padre Manuel da Nóbrega, superior da missão jesuítica que tantos e assinalados serviços prestaria ao Brasil, como veremos em capítulo próprio.
Mas não era só. A organização de uma capital exigia mais gente, além dos que responderiam pela administração e pelo ensino religioso e de primeiras letras, este confiado aos jesuítas. E assim aqui chegaram, também, 400 degredados, 200 homens de tropa regular e 300 colonos contratados. Vinham, ainda, muitas famílias.
Lançavam-se, na Bahia, os alicerces de Salvador, primeira cidade brasileira. Não confundir cidade com município, pois o primeiro foi São Vicente. São Paulo, por exemplo, só passou a ser cidade em 1711.
Na Bahia moravam 40 ou 50 portugueses, segundo Nóbrega, que deve ter excluído os índios, ao se referir aos habitantes ali encontrados numa povoação chamada Vila Velha ou Povoação de Francisco Pereira Coutinho que fora donatário da capitania.
A obra a ser levada avante não era simples; a par da parte material e administrativa, como a da construção de prédios, fortes etc, da instalação dos órgãos administrativos, havia a organização social e moral, que ofereceria reais dificuldades.
Nóbrega, vice-provincial da Companhia de Jesus no Brasil, no dia 9 de agosto de 1549, escrevia ao seu superior de Lisboa, padre Simão Rodrigues, importantíssima carta, onde se revela bom observador e rigoroso crítico:
"Nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras"* por mancebas. (…) E estas, deixam-nas quando lhes apraz, o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar."
Mas os europeus aqui encontrados e que viviam com as índias, o que não era aceito pela severidade excessiva do superior dos jesuítas, sendo entretanto perfeitamente compreensível pela situação em que estavam, alegavam em sua defesa, que não havia mulheres brancas com quem casar. . .
Nóbrega, a certa altura, sugere:
"Parece-me coisa mui conveniente mandar S.A. algumas mulheres, que já tem pouco remédio de casamento, a estas par-
* Negra ou negro, nas primeiras cartas jesuíticas significava índios, pois que, na situação em que se encontravam, estava relacionada à idéia de escravo, e estes, como se sabe, na Península Ibérica, eram os negros africanos.
tes, ainda que fossem erradas, porque casarão todas mui bem, contanto que não sejam tais que de todo tenham perdida a vergonha a Deus c ao mundo. E digo que todas casarão muito bem, porque é a terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz uma vez dura 10 anos aquela novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo os ramos e logo arrebentam. De maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida, e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra."
Aos que viviam amancebados, o superior da Companhia os admoestava de maneira que uns se casavam e outros pediam prazo para venderem as índias ou se casarem.
E ainda:
"Trabalhe V. R. por virem a esta terra pessoas casadas, porque certo é mal empregada esta terra cm degredados, que cá fazem muito mal, e já que cá viessem havia de ser para andarem aferrolhados nas obras de S.A."
Na questão da escolha do clero que era enviado ao Brasil, tornava-se implacável:
"Cá há clérigos, mas é a escoria que de lá vem. Não se devia consentir embarcar sacerdotes sem ser sua vida muito aprovada, porque destroem tudo quanto se edifica."
Nos negócios da justiça as coisas não estavam mais alentadoras. Pêro Borges, em carta que enviou ao rei em 7 de fevereiro de 1550, revela o estado em que encontrara as coisas da sua competência:
Da visita que fêz a Ilhéus diz que encontrou "um capitão Jorge de Figueiredo, que também serve de ouvidor, a que chamam de Francisco Romeiro que já ali esteve outra vez no mesmo cargo, e foi preso no Limoeiro (prisão de Lisboa) muitos dias por culpas que cometeu no mesmo ofício, o qual é bom homem, mas não para fazer mando de justiça, porque é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz fazer aos homens o que não devem."
E mais adiante:
"Eu não consinto agora que nenhum degredado sirva nenhum ofício e mando que não haja Juiz de Órfãos nem escrivães porque nenhuma destas capitanias não passa de 400 vizinhos como diz a Ordenação que há de ser vila em que houver de haver Juiz de Órfão."
Com a experiência de antigo corregedor de Algarves, foi vendo tudo:
"Nem pude dissimular com os tabeliães dos Ilhéus e alguns daqui do Porto Seguro porque os achei a servir deles sem cartas dos ofícios senão com uns alvarás dos capitães, nenhuns tinham livros de querelas, antes as tomavam em folha de papel. Nenhum tinha regimento, levavam os que queriam às partes, como não tinham por onde se regerem, alguns serviam sem iuramento: e porque isto é uma pública ladroíce e grande malícia porque cuidavam que não lhe haviam de tomar nunca conta, viviam sem lei nem conheciam superior, procedo contra eles porque me pareceu pecado no Espírito Santo passar por isto."
O Regimento do Ouvidor-Geral ainda não é conhecido, ou se perdeu, mas na dita carta de Pêro Borges, podemos conhecer os seus poderes:
"No meu Regimento se contém que nos casos crimes conheça por ação nova e que tenha alçada até morte natural exclusive em escravos e gentios e peões cristãos, homens livres e que naqueles casos, em que por direito ou vossas ordenações às pessoas ditas de qualidade é posta pena de morte natural inclusive, que eu proceda nos tais feitos até final e os despache com o governador, sem apelação, sendo ambos conforme e sendo diferentes que ponha cada um seu parecer e mande os autos ao corregedor da corte com o tal preso, e que nas pessoas de mais qualidade dos ditos, tenha alçada em cinco anos de degredo."
As Ordenações, de modo geral, eram as leis que se aplicavam no Brasil, no que se refere, principalmente, ao direito privado. "Direito público, notadamente na parte administrativa, sofria constantes modificações com as cartas de doação, regimentos, cartas régias, provisões, alvarás, que estabeleciam normas especiais para o Brasil."20 O direito municipal ia se formando de acordo com as condições e necessidades locais.
Assim, ao lado das Ordenações, surgia um direito especial para o Brasil, pois que Mem de Sá, secundando observação já feita por Pêro Borges, diria que a "justiça tinha que ser temperada até para os próprios colonos, sob pena de não haver gente no Brasil."
O provedor-mor que era auxiliado por três escrivães, o da fazenda, o da alfândega e o da casa de contos, tinha, como dissemos, que cuidar das rendas da coroa, que não estavam sendo arrecadadas como deviam, não estando, portanto, em ordem.
D. João III era bastante claro:
"… e para a arrecadação delas se ponha em ordem que a meu serviço cumpre, ordenei ora de mandar às ditas terras uma pessoa de confiança, que sirva de provedor-mor da minha fazenda."
Esta, de maneira sucinta, era a organização do governo geral, que estruturou a América Portuguesa, a fim de que tivesse administração em condições de atender ao reclamo dos povos, face às dificuldades que os donatários tinham que enfrentar.
A administração de Tomé de Sousa foi de bastante proveito para a terra, quer porque foi o primeiro governo geral aqui instituído, quer porque tudo estava por fazer. Contou com o auxílio de Caramuru (Diogo Álvares Correa) e dos índios seus amigos.
Tomé de Sousa "organizou a defesa das colônias, forti-ficando-as e tornando obrigatório por toda a parte o serviço militar, mas sem excesso. Protegeu os índios mas não sem castigá-los severamente, quando necessário; de uma feita, tendo estes mortificado e devorado dois portugueses, aprisionou dois quaisquer morubixabas (assim chamam aos chefes), atou-os à boca de uma peça que fêz disparar em seguida. Essa crueldade foi bem inútil e parece inexplicável que fosse consentida e autorizada por um homem como Tomé de Sousa, que, para poupar a população ou aumentá-la, revogou a seu arbítrio as leis penais das Ordenações, perdoando a facinorosos de toda a casta. Assim acumulou muitas dificuldades para os seus sucessores e autorizou maiores injustiças.
Percorreu várias vezes as capitanias, em 1552 com o padre Nóbrega, visitou o Sul, o Rio de Janeiro, São Vicente, depôs um mau capitão e tudo quis prover, para fortalecer a defesa da terra, dando auxílio e conselho, criando povoações (Conceição de Itanhaem e Santo André) a fim de reunir a gente que andava derramada pelos campos ou pelas praias, promovendo a expulsão dos espanhóis que comerciavam já pelo sertão do rio Paraná."21
Durante o seu governo foi nomeado o primeiro bispo do Brasil, D. Pêro Fernandes Sardinha.
Tomé de Sousa governou até 1553, quando foi nomeado, para substituí-lo, Duarte da Costa.
Quando chegou a notícia, as novas, sobre sua substituição, Nóbrega fêz tudo para que êle continuasse no Brasil, como governador ou não, enviando cartas que falavam dos grandes serviços prestados à Colônia, mas nada conseguiu.
Com Duarte da Costa vieram novos jesuítas, entre eles José de Anchieta, que se tornaria o grande apóstolo do Brasil e uma das figuras ímpares da nossa história. Luís da Grã chefiava o grupo de loiolistas que aportaram em 1553.
A administração de Duarte da Costa não foi tranqüila. Muito ao contrário. Teve que enfrentar problemas e não poucos.
Os historiadores, com raras exceções, não têm feito justiça a Duarte da Costa. E sem buscar as razões dos fatos do seu governo, chegam a apontá-lo como administrador fracassado.
Quando Tomé de Sousa transmitiu o cargo a Duarte da Costa, a situação entre portugueses e índios era das mais tensas, sendo que o que mais exaltava os ânimos selvagens era o fato do estraçalhamento dos dois morubixabas amarrados à boca de um canhão. O espírito de vingança dos índios veio a explodir em cheio na administração Duarte da Costa. Não bastasse isso, seu filho Álvaro, valente soldado que fora em terras d’África, mas de conduta extravagante, entrou em choque com o bispo Pêro Fernandes Sardinha. Nesse período, franceses invadiram o Rio de Janeiro com o intuito de fundar a França Antártica. Villegagnon os chefiava. Jamais a metrópole mandou recursos para os expulsar. Vivia, assim, Duarte da Costa, ameaçado pelos índios que atacavam os brancos sempre que podiam, e sem nada poder contra os franceses que, em grande número e aliados aos aborígines, inimigos dos lusos, tomavam pé em Terra firme. Comparar o seu governo com o de Mem de Sá — que foi indiscutivelmente, um valoroso administrador — para diminuí-lo, é cometer um grave erro. Mem de Sá pouco teria feito se ficasse na situação desamparada em que permaneceu Duarte da Costa. Nada recebeu de Portugal para combater os franceses. A Confederação dos Tamoios teve um feliz término, graças, principalmente, a Anchieta e Nóbrega e ao sempre esquecido José Adorno, que conduziu os jesuítas em navio de sua propriedade, até Iperoig, onde foi ajustado o armistício.
Para a expulsão dos franceses do Rio, não fora o concurso dos paulistas, outra teria sido a sorte das armas.
"Quando Estácio de Sá se desesperava — escreve Martins Francisco dos Santos — por não poder expulsar do Rio de Janeiro os franceses e seus aliados, os tamoios, foi em Santos que êle resolveu, a conselho de Nóbrega, buscar o apoio e o reforço de que carecia para a última tentativa de expulsão. Foi José Adorno, então, quem reuniu um grande corpo de combatentes brasileiros e portugueses — 300 homens de Santos, São Vicente e São Paulo, segundo Simão de Vasconcelos, armados e aparelhados pelos genovês — fornecendo bergantins e canoas de voga, conseguindo peças de artilharia, mantimentos e tudo quanto era necessário para uma longa expedição."22
No dia 20 de janeiro, os invasores foram expulsos do território fluminense, mas, para isso, Mem de Sá teve apoio de gente de além-mar e daqui. Duarte da Costa, não. Ficou como que encurralado, na Bahia, com poucas armas e com pouca gente. Frei Vicente do Salvador afirmou ter sido Duarte da Costa "grande servidor do rei".
Fêz o que pôde, governando em meio à tormenta e sozinho, ou quase sozinho, procurando imprimir direção segura cm meio a elementos duvidosos.
Devido aos desentendimentos havidos entre Álvaro da Costa e o bispo, foi este chamado a Lisboa. O navio em que ia para a Europa, naufragou nas costas brasileiras, perto do rio Curupire, tendo sido Pêro Fernandes Sardinha e outros náufragos, depois de chegarem à praia, presos e devorados pelos índios.
Em 1558 terminou seu período de governo, sendo nomeado para substituí-lo o governador-geral Mem de Sá, de grande prestígio na corte e irmão do grande poeta Sá de Miranda.
A administração de Mem de Sá foi até o ano de 1572. Durou, portanto, 14 anos.
Como já vimos, ao sair Duarte da Costa, a situação não estava boa. Teve Mem de Sá que harmonizar as relações entre colonos e devolver aos jesuítas as antigas condições de trabalho, apoiando-os na sua obra.
Sobre a expulsão dos franceses da Baía da Guanabara, fizemos referência, mas cabe ainda dizer, tão logo Mem de Sá teve oportunidade, em 1560, veio para o Sul e deu combate aos invasores, que foram vencidos, mas não expulsos do Brasil naquela região. Isto só se daria em 1567.
Em 1565, Estácio de Sá, que veio comandando reforços para lutar contra os invasores, deu início, junto ao Pão de Açúcar, à povoação que se transformaria na formosa Rio de Janeiro, hoje Estado da Guanabara.
Na sua primeira viagem (1560) ao Sul, Mem de Sá esteve em São Vicente e a pedido de Nóbrega transferiu a Vila de Santo André da Borda do Campo para o povoado que os jesuítas e
Tibiriçá* fundaram em 25 de janeiro de 1554, durante o governo de Duarte da Costa. Assim, em 1560, por determinação do terceiro governador-geral, São Paulo passou à categoria de vila.
Quer pelo apoio que recebia da Metrópole, quer pelo entendimento que mantinha com os jesuítas e ainda pelo longo tempo que administrou, Mem de Sá foi, dos três primeiros governadores, o que mais se destacou.
Os engenhos de açúcar que tomaram grande impulso a partir de 1549, com a entrada dos escravos africanos, transformaram-se na principal fonte de riqueza com o correr do tempo.
Considere-se, e isto é bastante importante, que o escravo negro, substituindo, em grande parte, o índio, diminuiria um dos pontos de atrito entre jesuítas e colonos, pelo menos no Nordeste, onde se concentraria o cerne da economia colonial, nos dois primeiros séculos.
Durante o tempo em que Mem de Sá esteve no Brasil não só cuidou da administração, mas também dos seus engenhos, que lhe deram boa fortuna. Cansado e velho, pediu que lhe dessem substituto, tendo sido nomeado, em 1570, Luís de Vasconcelos, que não chegou a tomar posse, pois durante a viagem para o Brasil, com mais quarenta religiosos e outros infelizes, caiu em mãos dos piratas franceses, que os trucidaram.
Mem de Sá morreu na Bahia, em 2 de março de 1572, tendo o ouvidor-geral Fernão da Silva assumido, interinamente, o governo.
* Como se sabe, Tibiriçá, sogro de João Ramalho, foi quem construiu a cabana onde os jesuítas se abrigaram no dia da fundação de São Paulo. Seu nome, portanto, está intimamente ligado ao ato. E sempre esteve ao lado dos inacianos, notadamente nas horas difíceis. Daí Anchieta ter escrito: "Mais do que todos creio que lhe devemos nós, os da Companhia, e por isso determinou dar-lhe em conta não só de benfeitor, mas ainda de fundador e conservador da Casa de Piratininga e de nossas vidas." (Carta de 16 de abril de 1563).
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